Monday, August 14, 2006

Festa da Boa Morte leva turistas a Cachoeira


Memorial da Boa Morte

Samba-de-roda diverte visitantes nos preparativos para a tradicional procissão


Perla Ribeiro

O entra e sai no prédio que abriga o Memorial da Boa Morte ontem começou cedo. Depois de quase um ano cuidando dos preparativos de mais uma festa, as irmãs ajeitam os detalhes para a saída do cortejo fúnebre. Turistas de todos os lugares queriam saber a que horas a procissão ganharia as ruas da heróica Cachoeira, a 110km de Salvador. Sequer havia começado a programação religiosa e o samba-de-roda denunciava que a cidade estava em festa. No início da noite, repetindo um ritual secular de fé e devoção, as irmãs da Boa Morte percorreram as ruas da cidade em louvor a Nossa Senhora. A programação continua hoje à noite, com missa de corpo presente a Nossa Senhora, seguida de procissão e encerrada amanhã, com missa festiva às 9h, pela Assunção de Maria. Entretanto, a festa profana se estende até quinta-feira, com muito samba-de-roda.
Vestidas a rigor com saiões bem rodados e gomados, bata, torço e chagrim brancos, pescoço coberto por guias dos orixás, as 22 mulheres da confraria ganharam as ruas anunciando a morte de Maria. Antes disso, deixaram o memorial em direção ao Museu da Boa Morte, imóvel da corporação localizado ao lado da igreja de Nossa Senhora d’Ajuda, onde se reúnem em volta da imagem de Nossa Senhora e rezam a Ave-Maria. Elemento simbólico da tradição, tochas com velas acesas são distribuídas entre elas. Depois da procissão é realizada uma missa em ação de graças em memória das irmãs falecidas, seguida de uma ceia branca, que, para elas, tem uma conotação semelhante ao significado da Sexta-feira da Paixão para os católicos.
Há 30 anos na Boa Morte, a irmã Nilza Matias da Paixão, mais conhecida como Nini, 72 anos, descreve a confraria como um grupo que tem “muita fé, muito axé, muita paz e união”. O interesse em participar do grupo surgiu ainda na infância e hoje fazer parte da seleta confraria é tudo na sua vida. “Minha avó era da irmandade, mas fui tomando gosto com minha madrinha Ester. Comecei ajudando nas atividades. Carregava água do rio para lavar prato, cozinhava para elas no fogão de lenha, até que decidiram colocar o meu nome na lista”, conta.
Moradora de Muritiba, ela está sempre em Cachoeira cumprindo com as obrigações da irmandade composta exclusivamente por mulheres negras acima de 45 anos. Toda quarta-feira, por exemplo, as irmãs se reúnem para rezar o terço para Nossa Senhora. Já no mês de agosto, elas abrem mão da família e de qualquer outra obrigação para se dedicar a Maria. Filha de Oxum com Ogum, a ekede Nini também é membro da Irmandade do Sagrado Coração de Jesus, em Muritiba. Assim como Nini, todas as demais irmãs são mães ou filhas-de-santo e freqüentam a igreja católica.
Em quase dois séculos de existência, a irmandade se destaca como uma tradição cuja importância é ressaltada pelo sincretismo que une elementos da religião afro-brasileira, especialmente do candomblé, com os de uma antiga festividade cristã _ a Assunção de Nossa Senhora. Durante seminário realizado na manhã de ontem, na Câmara de Vereadores de Cachoeira, o historiador Ubiratan Castro, que é presidente da Fundação Cultural Palmares, disse discordar que seja chamado de sincretismo a ligação religiosa das irmãs da Boa Morte. “Prefiro denominar isso de dupla-pertença, que é o culto de duas religiões sem misturá-las. E quando estão na igreja, estas mulheres amam Nossa Senhora, fazem vigília, respeitam todo o ritual”, pontua.

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Sinais da dupla pertença

Sincretismo ou dupla pertença, não importa. Fato é que toda a irmandade convive com as duas matrizes religiosas ao mesmo tempo e quando louvam Nossa Senhora, louvam também a Nanã. Aos 75 anos, Dalva Damiana de Freitas é tesoureira da festa deste ano. São 11 anos de irmandade e para ela também é motivo de orgulho fazer parte do grupo. “É uma religião respeitada, sentimos orgulho de sermos filhas de Nossa Senhora e o mês de agosto é todo de dedicação a Maria. E tudo que fazemos por amor a ela traz grande emoção, até mesmo sentar à mesa para a ceia. A gente se sente emocionada desde o início”, considera.
Hoje é o amor a Maria que une todas estas mulheres. Entretanto, no passado, elas foram movidas pelos ideais de liberdade. Detentoras de certo poder, as negras do partido alto se organizaram em uma irmandade. Não se tratava simplesmente de mais um grupo de caráter religioso com a finalidade única de devoção a um santo, no caso delas, a Nossa Senhora da Boa Morte. Diferente do que é visto hoje, no período colonial, as irmandades ultrapassavam o papel de associações de leigos, de caráter religioso, com fins de culto a um santo de devoção.
Erguidas sob o consentimento do Estado, estas associações detinham um aparato legal, compromissos e hierarquia, cuja finalidade ultrapassava o caráter de devoção, assumindo um caráter social. Caracterizava-se e era constituída basicamente a partir da divisão social, brancos, livres, escravos, ricos e pobres. No caso das irmãs da Boa Morte, com a criação da confraria, as negras alforriadas podiam utilizar o grupo religioso para dar sustentabilidade ao movimento político da abolição da escravatura sem despertar suspeitas dos senhores de engenho.
“A devoção veio depois, o movimento político contra escravidão foi que serviu de base para a formação da irmandade”, afirma Valmir Pereira dos Santos, coordenador da Boa Morte, se referindo ao propósito comum de resistência anti-escravista que influenciou a criação da irmandade. Com o objetivo de resgatar africanas que exerciam função sacerdotal importante na África, pagar alforria de negros escravos e dar proteção e encaminhamento aos fugitivos, nasceu na Bahia, no início do século XIX, a Irmandade da Boa Morte.

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Afroamericanos participam do evento

A Bahiatursa registrou presença no café da manhã realizado sexta-feira para marcar a abertura da Conferência de Assistentes Sociais Afro-americanos, que Salvador sedia pela terceira vez e foi programada para acontecer justamente na época da Festa da Irmandade da Boa Morte, em Cachoeira, no Recôncavo. Do evento participam mais de cem afrodescendentes americanos. Trata-se de um segmento do mercado americano _ que tem um público muito seduzido pela Bahia _ que a Bahiatursa tem trabalhado há alguns anos, em parceria com a Avocet, multinacional dos EUA com forte atuação na área do turismo.
Depois do café da manhã, os afrodescendentes americanos visitaram pontos turísticos de Salvador como a Igreja do Bonfim e o Mercado Modelo. Neste final de semana, eles se deslocaram para Cachoeira. Anualmente a festa da Boa Morte atrai uma multidão de turistas estrangeiros, principalmente dos EUA.
Mas, durante todo o ano, a parceria com a Avocet tem permitido a chegada à Bahia de grupos de afrodescendentes americanos formados por profissionais liberais diversos, como médicos, advogados, enfermeiras e muito mais. O turismo étnico é um dos segmentos que têm merecido atenção especial por parte da Bahiatursa.



Aqui Salvador, Correio da Bahia, 14.08.2006
www.correiodabahia.com.br

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